domingo, 23 de junho de 2019

Ensaio sobre o Seminário “Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù”.


Weffort (2001) aponta a importância de ler as obras clássicas na fonte, com apoio de uma(um) comentadora(r) especialista da área, além da própria interpretação da(o) leitora(r) já que em política um exercício de interpretação é sempre um exercício de liberdade.
Partindo desse formato, o primeiro capítulo do livro “Os clássicos da política” volume 1, formulado por Maria Tereza Sadek, nos apresenta uma breve biografia de Maquiavel, o contexto sociohistórico em que viveu e sua principal obra: “O Príncipe” (1512-1513).
Maquiavélico e Maquiavelismo são adjetivos e substantivos respectivamente que estão tanto no discurso erudito, no debate político, quanto na fala cotidiana do dia-a-dia. Em qualquer deles, porém, esta associado à “procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro." (...) “não há tirano que não tenha sido visto como inspirado por Maquiavel”.
Nascido na Itália Renascentista, que se encontrava dividida em pequenos reinos, Maquiavel organizou seus pensamentos em diversas obras, nas quais o Estado fora sua preocupação base. Ao propor uma concepção de Estado concreto, estruturado na realidade experimentada, Maquiavel rompe com o paradigma repetido por séculos de um Estado idealizado, pondo fim à ideia de uma ordem natural e eterna. Para ele, a ordem é construída a partir da organização social coletiva, o que reinterpreta a questão política vigente, inaugurando o que compreendemos como Estado Moderno.
A prática política, segundo Maquiavel, exige virtù, o domínio sobre a fortuna. Mas como isso seria possível? Maquiavel considera que a Fortuna é uma deusa boa, assim como na Antiguidade, uma aliada em potencial que precisava ser atraída, pois tinha os bens que interessava a todos os homens: poder, gloria, honra e riqueza, mas só seria favorecido quem a seduzisse, e isso só seria possível aos homens de inquestionável coragem e virilidade, somente quem possuísse essas qualidades ou essa virtú, poderia ser agraciado com os presentes da cornucópia da Deusa Fortuna.
Com o advento do Cristianismo, a deusa Fortuna deixa de ser considerada a boa deusa, e é substituída por um poder cego, inabalável, fechada a qualquer influencia, que distribui seus presentes de forma indiscriminada. A cornucópia é substituída pela roda do tempo, que gira indefinidamente sem que se possa descobrir o seu movimento. Os bens valorizados, neste momento, deixam de ser a honra, o poder, a riqueza e a gloria; a felicidade só pode ser conquistada no paraíso. O homem não tem controle sob seu destino, e fica a mercê da providencia divina.
Contudo, Maquiavel acredita que é possível que o homem de virtú possa ter o domínio da fortuna, pois a liberdade do homem pode amortecer o suposto poder da Fortuna. Ela é uma deusa boa que deseja ser seduzida e conquistada pelos homens bravos, corajosos, aqueles que demonstrarem ter virtú.
Importante ressaltar que ao comparar a virtude com uma deusa, e posteriormente com uma mulher que podia ser subjugada pela violência e humilhação, Maquiavel aponta em seus escritos a historicidade do machismo ocidental.
O autor italiano usa a figura do mito da deusa Fortuna, não da maneira tradicional, isso porque ele recupera no mito questões adormecidas e pacificadas e o usa para subverter as concepções acomodadas. Neste sentido, não cabe a idéia da virtude cristã para o príncipe, que crê na bondade angelical alcançada pela libertação das tentações mundanas, mas que na verdade ele precisa perseguir o poder, a honra e a gloria, que são típicos prazeres terrenos, e que só podem ser alcançados através da luta pelo homem de virtú. Nesse sentido, ele destaca que o poder se funda na força, mas é a posse de virtú a chave por excelência do sucesso do príncipe para a manutenção da conquista. Assim sendo, o homem de virtú deve atrair os favores da cornucópia, conseguindo a fama, a honra e a gloria para si e a segurança para seus(suas) governados(as).
Um príncipe sábio deve guiar-se pela necessidade, aprender os meios de não ser bom e a fazer o uso ou não deles, conforme as circunstâncias. O governante deve aparentar possuir as qualidades valorizadas pelos(as) governados(as). O jogo entre a aparência e a essência sobrepõe-se a distinção tradicional entre virtudes e vícios. Se para agir com sabedoria, o príncipe tiver que cometer crimes ou ser cruel, ele deve fazê-lo de maneira rápida, pois o que importa é o triunfo das dificuldades e a manutenção do Estado.
A famosa frase atribuída ao autor “os fins justificam os meios”, para alguns pode ser considerada o resumo do pensamento dele, mas tal formulação não é encontrada na obra de Maquiavel. Essa frase, amplamente conhecida, fora do contexto, foi usada para justificar atos tirânicos ao longo da historia que deturparam o real sentido da obra do autor, que acreditava que o príncipe deveria fazer o que fosse necessário para manter o Estado unido, e conseguir governar.
O príncipe, para ele, deve ter sabedoria para agir conforme as circunstâncias, aparentando possuir qualidades valorizadas pelos(as) governados(as). Metaforicamente, o príncipe remete à uma imagem dual, metade humana, metade animal: enquanto a natureza humana diz respeito a anteriormente mencionada necessidade de virtù, a natureza animal se refere ao leão e a raposa, símbolos representantes do medo e da astúcia enganadora.
Ao propor essa caracterização ao príncipe, Maquiavel rompe com a concepção de Estado diretamente relacionada à moral, uma vez que aponta a manipulação dos(as) governados(as) como estratégia para se manter no poder.
Consideramos pertinente a comparação dessa característica dual com o governo populista de Vargas. Popularmente conhecido com o ‘pai dos pobres’, Getúlio ora defendia os interesses da classe dominante, ora se mostrava defensor da classe oprimida. Esse jogo de manipulação política certamente pode ser analisado como mecanismo para manutenção do poder no Estado burguês brasileiro.
No cenário da Itália Renascentista, Maquiavel escreveu “O Príncipe” (1512-1513) possivelmente para trazer a necessária centralização política ao centro do debate. Perseguida pelo Index (índice de livros proibidos pela Igreja), a obra se estruturou no contexto conflituoso da época, quando a península fragmentada estava à mercê das grandes potências europeias, correndo perigo de ser dominada/invadida por elas.
Após escrever o clássico d’O príncipe, publicado postumamente, Maquiavel indica a república como caminho possível em seguida da já apoiada unificação italiana, descrevendo em “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio” (1513-1519) inclinação política à república.
A provável defesa da unificação italiana para a implementação de um governo democrático nos incita a pensar que Maquiavel se dirigia à classe oprimida em seus textos, assim como o fez, no âmbito da educação, Paulo Freire, na década de 1970 no Brasil. Freire marca o desvelamento da realidade e sua problematização como marcos cruciais para a emancipação da classe oprimida. Nesse sentido, achamos pertinente discorrer sobre a possível dialogicidade dessas obras.
Historicamente condenado à visão de um politicista sem escrúpulos, Maquiavel seguramente se configura como referência para a compreensão, em seus múltiplos entendimentos, da estrutura do Estado Moderno. Suas ideias sobreviveram ao próprio tempo, sendo fonte de estudo da parte constitutiva da nossa própria atualidade.

Referências Bibliográficas
SADEK, M.; “MAQUIAVEL, N.”. “Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù”. 14ª ed. In: Os clássicos da política. São Paulo, Ática, vol.1, 2010. p. 11-50.



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